domingo, 21 de setembro de 2025

O PASSADO QUE NÃO PASSA

 

"Nos arames em que foi 
peão pendurado,
deixem seus olhos fixos
Nos chicotes e talas,
nos palas cardados,
deixem seus olhos fixos
Nos esculachados que perambulam
sem tréguas,
deixem seus olhos fixos
                        ...  ...
Sérgio Jacaré, 1990

 


Como em todo o Setembro, faz tempo, os "gaúchos" festejam a si mesmos, cantam suas façanhas, desfilam suas bravatas, dançam sua hipotética superioridade. Louvam um passado harmonioso que não existiu, que não é histórico. É só lenda. A celebração cívica da "semana farroupilha" é organizada e coordenada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, criado em 1948 no seio da sociedade civil, e com o apoio oficial do governo do Estado desde 1975. Lembrando aqui que tradição é a transmissão de costumes, crenças e valores múltiplos através das gerações humanas, constituindo elemento fundamental na construção e manutenção da identidade cultural de um povo. Mas tradicionalismo é um movimento ideológico que quer manter viva uma única tradição - a do "patrão".  E tem por objetivo camuflado justificar a opressão de classe no tempo presente. Afinal, sempre foi assim, um patrão tão bom.
O MTG, desde logo, escolheu a guerra farroupilha como seu mito fundador , seu ponto de partida simbólico,  como se tivesse sido uma guerra popular por libertação do "povo" quando , na verdade, só  aconteceu para defender os interesses dos estancieiros latifundiários destas plagas. Suas lideranças jamais acenaram com a distribuição de terra para os peões nem com o fim da escravidão para os cativos. Em 1964, mostrou-se, de pronto, apoiador da "revolução" que ia livrar o Brasil do comunismo. Por isso, ainda naquele ano, foi incluído  no projeto cultural da ditadura como elemento agregador de gentes em torno do conservadorismo político e social. E a "semana farroupilha" foi oficialmente criada. Serviu como luva às intenções golpistas de criar uma base social que defendesse e legitimasse o arbítrio. Espalharam-se  "galpões crioulos" pelos colégios, clubes de amigos e quartéis da brigada militar.
Ao final do período ditatorial, estava enraizado de tal forma o conservadorismo sócio-político na sociedade sul-rio-grandense que o primeiro governador eleito pelo voto depois de 21 anos de chumbo foi Jair Soares, um homem do "regime" que, em 1985, sancionou a lei que estabelecia o "dia do gaúcho".
Embora algumas tentativas tenham sido feitas, ali no final do século XX, para desvelar culturalmente os engodos desse tradicionalismo regional, muito pouco se avançou na direção pretendida.
Entre os símbolos "tradicionalistas", é destaque consensual o chimarrão,  visto como expressão maior da nossa hospitalidade e da nossa cordialidade. Numa roda de mate cabem todas as classes, é o que se espalha aos ventos. Mas não cabem, é só mito. 
O termo chimarrão, do espanhol  "cimarrón", originalmente significava bicho solto, de rumo incerto, como os cães sem dono, ou o gado selvagem espalhado pelo sul da América, desde a derrocada das estâncias jesuíticas. Cão chimarrão, gado chimarrão. Assim, nos idos do século XVII. Pejorativamente, passou a significar também gentes. Aquela gente xucra, bruta e andarilha, sem eira nem beira. Chimarrões foram considerados todos os peões daquele tabuleiro. Bem assim, pelo tempo a fora.
Por extensão de identidade, acabou virando sinônimo de "água da erva", bebida amarga  apreciada pelos chimarrões humanos, que lhe davam o nome de mate, do quíchua "mati". E a usavam nos rituais de acolhimento com que os povos guarani, quíchua e aimará recebiam suas visitas. O gosto de "chimarrear" dos povos originários foi se espalhando igualmente entre a mestiçagem forçada que chegava para trabalhar nas atividades da pecuária nascente. Mas custou muito para entrar nos avarandados da "casa grande". E lá só chegou quando se descobriu que ajudava a amenizar as ressacas do patrão. 
Antes disso, bem no princípio, tinha sido a voz domesticadora dos jesuítas, prometendo aos povos originários destes "pagos" uma vida comunitária idealizada, forjada pelo delírio imperialista da então poderosa igreja católica.
Depois, em meados do século XVIII, a inescapável desventura da dispersão, ao fim das guerras guarani-. missioneiras. Uma sobrevivência errante, o mais das vezes solitária, caçando gado solto para comer a carne e vender o couro, com as mãos qualificadas pelos padres para o ofício pastoril da civilização branca, deixando ver pelas feições do rosto a impotência das mães chinas frente a sanha estupradora dos invasores europeus. E no peito carregando o medo de cair nas mãos de um "bandeirante". Não eram bem vindos nos "povos" por onde passavam, aqueles "índios vagos".
Pejorativamente, começaram a receber também a alcunha de "gaudérios" ou "gaúchos". Gaudério querendo dizer "vadio". Gaúcho, do espanhol gaucho, querendo dizer "sem pai", mas também "filho da china" Julgados como salteadores, combatidos pela sociedade em construção, discriminados pelos "de bem". Eles, que nada tinham, eram uma ameaça para os que tinham muito. Assim diziam os que tinham muito.
Contudo, no tempo em que seguiam a pé pelo chão rio-grandense, mestiçados pela força bruta, ia por aqui sendo formado, paralelamente, o latifúndio. O modo de usurpação do solo escolhido pela monarquia portuguesa para garantir  "seus"  direitos sobre um vasto território ao sul do Trópico de Capricórnio. Enquanto "comandâncias militares" e "barras diabólicas" protegiam a costa oceânica. O gado chimarrão deixado pelos jesuítas e multiplicado livremente pelos campos, uma riqueza "pronta", dádiva da natureza, foi o atrativo oferecido pelo rei aos candidatos à terra prometida. Também como riqueza pronta, daí por diante estariam disponíveis para o trabalho campeiro aqueles desgarrados  da vida colonial.  
O tempo passou, a terra foi cercada, a porteira fechada,  a concepção estancieira de mundo instaurada e o colonialismo latifundiário precisou realmente absorver aqueles "vagos". Só eles sabiam o manejo adequado da gadaria xucra que continuava resistindo à vida nos currais. Temporários, diz a lenda que por vontade própria. Não gostavam de trabalho "fixo".
Vieram também as guerras caudilhescas de fronteira e os peões/gaúchos/chimarrões precisaram ser soldados. Tal qual os contingentes negros escravizados que, originalmente, tinham vindo para sofrer e morrer nas charqueadas. Colocados sempre na linha de frente. Se por vontade própria, a lenda não conta.
Esta é a história escondida, aquela que não vira nome de rua nem de praça. Que não usa bombacha nem vestido com lacinhos. Muito menos botas ou lenços coloridos.
Assim, o Estado do Rio Grande do Sul chega ao século XXI trazendo em sua "mala de garupa" uma bagagem ideológica forte o suficiente para fazer parecer real o que real não é. Considerando aqui ideologia com o significado que lhe deu Marx - uma falsa visão da realidade propagada pela classe dominante para mais facilmente continuar dominando.
O "pago" ponta-sul do Brasil, tão orgulhoso de suas peculiaridades geopolíticas, autoproclamado tão "aguerrido e bravo", querendo-se tão único dentro da brasilidade, está hoje sendo "moldado" pelo governo Eduardo Leite, eleito e reeleito pelo voto, para servir com exclusividade aos donos do poder econômico. Desde que chegou ao poder, alicerçado no modelo neoliberal mais puro, nada tem feito a não ser submeter o chão e o povo do RS aos interesses do capital em sua fase contemporânea. Para isso, ataca em todas as direções, mas escolheu como prioridade o tripé ESCOLA PÙBLICA - EMPRESAS ESTATAIS - POLÌTICA  AMBIENTAL, com a cumplicidade do Parlamento Estadual, majoritariamente seu.
Arremete violentamente contra servidoras e servidores públicos, desmanchando no ar suas carreiras, arrochando seus salários, tirando-lhes a dignidade profissional, tudo para que não consigam cumprir a tarefa que lhes cabe - servir ao público.
Concomitantemente, vem desmantelando o Código Ambiental do Estado em favor do agronegócio da soja e da casta  "invisível" da especulação imobiliária urbana e rural, sem que as vozes levantadas em contrário consigam vencer os gritos a favor, ampliados pela RBS. Nem a tragédia de 2024 conseguiu provocar uma mudança nesse rumo. Mesmo com "um pingo no telhado e o pampa indo embora". 
E não fica por aí o esforço governamental de Eduardo Leite para deixar o Estado mais pobre e sua escória dominante mais rica. Com "o golpe do plebiscito", tirou o voto popular da jogada e logrou privatizar as históricas CEEE e CORSAN, em vitória avassaladora sobre a luta social sul-rio-grandense. Longa e dura tinha sido a resistência, Muito grande a dor da perda.
No entanto, apesar de tantas "façanhas", tem aparecido nas pesquisas como o preferido dos "gaúchos" para o Senado da República. Não se sabe bem o porquê. Talvez seja apenas por manter acesa no Piratini uma "chama crioula" que não ilumina, cega.



                                                                                       MARIA 
















segunda-feira, 8 de setembro de 2025

CÁLICE

 

"Pai, afasta de mim esse Cálice, 
de vinho tinto de sangue"
Chico e Gil,1973




Não há tentativa de golpe no Brasil. Há um golpe em andamento. Desde 2016. Em etapas. Primeiro impediram Dilma, com o Supremo, com tudo. E um Congresso, o do tchau querida, que parecia "o mais canalha". Então começaram a atravessar "a ponte para o futuro", com Temer comandando a destruição dos direitos trabalhistas conquistados com suor e sangue ao longo do século XX e, de quebra, levaram junto a escola pública, com a destruição do ensino médio e o florescimento dos colégios cívico-militares. 
Depois prenderam  Lula, num processo comandado pela CIA, tendo a Lava Jato e o Supremo como "os instrumentos da hora". Para colocar na presidência da república alguém capaz de destruir o país, alimentando a chama ressurgida do fascismo social. E eleger um Congresso "ainda mais canalha". Além de corroer por dentro todas as instituições ditas democráticas.
A destruição foi tanta que as próprias escórias dominantes facilitaram, com o Supremo tirando o pé, a volta de Lula em 2022, mas ali-ali. Com a rédea curta de um Congresso ainda pior que "o mais canalha" anterior. E a besta-fera solta. Veio o dezembro incendiário, as estradas atravancadas pelos caminhões e os acampamentos nos quartéis.
E o 08 de janeiro. Que, para nossa "salvação", destruiu o relógio de D. João e a cadeira do Moraes. Maus modos que nem a burguesia cheirosa suportou. Estava "criado o clima" para acabar nos tribunais, mas não encerrou o golpe. São inúmeras as evidências. A maior de todas é a luta pela anistia dos participantes, dos organizadores e dos mentores do "já feito". Para que possam continuar fazendo. 
Anistiar golpistas significa abrir ainda mais as portas da política nacional para o capitalismo neoliberal e, em especial, para o imperialismo norte-americano.
Apesar de tudo isso, setembro de 2025 começou marcado por uma ofensiva bolsonarista que empurrou LULA III outra vez para as cordas. O que se viu, continuando agosto, foi o levante no Congresso ganhar força com Tarcísio à frente, as "redes" dominadas amplamente pela direita e Lula, lúcido, pedindo um socorro que não veio.
O 07 de Setembro "do grito pela soberania" mostrou apenas a fragilidade ou a omissão das direções partidárias de esquerda, dos sindicatos e dos movimentos populares Brasil a dentro. Parece que a maioria tinha algo mais importante a fazer do que lutar no chão da rua, onde deviam estar mas não estiveram. 
No final do dia, o resultado foi mais um fracasso da luta pela vida. Porque é da vida que se trata. Dos excluídos, precarizados, adoecidos, usados e abusados pelo projeto de poder hoje hegemônico.
Em São Paulo, cidade emblemática, enquanto os que "gritavam" por tais vidas não chegaram a dez mil, o fascismo levava à avenida mais de quarenta mil cabeças de gado cobertas por uma gigantesca bandeira do império do capital. E foi assim em todo o país, não há como negar.
Mais dia menos dia, condenado o inominável no Tribunal "Superior", o que vai acontecer? Os navios da IV Esquadra vão deixar o litoral da Venezuela e atracar no Paranoá? As brigadas comandadas por Silas Malafaia vão fechar os "antros de perdição comunistas"? O agropop vai acelerar a morte das florestas e dos pampas? A vida boa dos que têm vida boa vai continuar igual enquanto a vida difícil dos que têm vida difícil vai ficar cada vez mais difícil?
Pensando nisso, o que há mesmo para  ser comemorado neste setembro estrelado pela bandeira do opressor ?
Por favor, alguém responda...

                                                                                            MARIA

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

AO GRITO, CAMARADAS

 


" A nossa Pátria é o mundo, nossos compatriotas são os operários e os estrangeiros, para nós, são todos os capitalistas."   
Manifesto da Federação Operária, 1908




Lula tem crescido nas pesquisas de opinião divulgadas por aí. Por que será? Assim, de repente, depois de tantos meses em queda. Será que o povo está, finalmente, abrindo os olhos? Ou será que foi a valentia dele, frente aos ataques do império do norte? Ou tudo junto e misturado? As teses multiplicam-se...
Uma coisa é certa, no entanto. Pesquisas eleitorais não são garantias de futuro, são apenas probabilidades no presente. E, assim mesmo, por inúmeros fatores, bastante frágeis. Por isso, não cabe no momento uma euforia ingênua ou prepotente.
È bom lembrar  que a maior potência imperialista do mundo tem deixado nítido que pretende continuar e aprofundar, em nova fase, a guerra "híbrida" que faz ao Brasil desde o primeiro governo Lula, no alvorecer deste XXI. Ao longo do século XX, a tática tinha sido outra e a guerra se chamava "fria".
A fase atual começou em 2008, quando, com a justificativa de combater o narcotráfico nos "mares do sul" recriou sua IV frota que passou a circular em águas latino-americanas. O presidente deles era Bush, "o terror do terror". Na Venezuela estava Chaves e no Brasil estava Lula e o pré-sal recém descoberto. Momento tenso.
Depois veio Obama, "o nobel da paz", colocando a CIA a bancar a Operação Lava-Jato, a espionar a Dilma e incentivar o golpe de 2016. O objetivo era acabar com a resistência mínima dos governos liderados pelo PT aos avanços neoliberais começados com Collor e acentuados  por FHC. 
Agora veio Trump, o magnífico, que quer o chão das terras "raras" para, com ele, alimentar as plataformas digitais do capitalismo neoliberal. E não vai desistir assim tão fácil. Tem a seu lado as escórias dominantes entre nós, representadas  majoritariamente nos espaços parlamentares do país em todos os níveis -  nacional, estadual e municipal. E, com elas, pretende construir  2026. No grito. Este é o projeto golpista em curso e esta longe de terminar. A condenação da quadrilha Bolsonaro não será a batalha final.
Lula tem feito o embate sozinho. Por mais que chame e provoque. As organizações da esquerda política, as frentes populares, os movimentos sociais, as centrais e federações sindicais, têm ficado na "torcida", mas sem levantar nem ao menos para fazer "olas". Até quando?
O Rio Grande do Sul, o Brasil e o Mundo precisam que a luta social grite aos ventos e em massa. Por justiça social, por Gaza e pelo Congo, pelo direito ao tempo e à preguiça, pelo amor livre para todes, pela distribuição da riqueza, pela vida no Planeta Terra.
No dia 7 de Setembro ,  o Grito dos Excluídos pode ser a oportunidade para levantar a voz coletiva vinda do chão da rua, como um trovão das entranhas, ecoando por baixo, querendo explodir. Em defesa da soberania nacional e da nossa humanidade. De braços dados.
Mas pode ser também mais uma oportunidade perdida, se poucos forem os presentes. Como uma recente na Câmara de Vereadores da cidade do Rio Grande, que o povo não ocupou para impedir a aprovação de uma moção de apoio à anistia do inelegível. E nossas vereadoras e vereadores ficaram gritando sozinhos.


                                                                                           MARIA