"Nos arames em que foi
peão pendurado,
deixem seus olhos fixos
Nos chicotes e talas,
nos palas cardados,
deixem seus olhos fixos
Nos esculachados que perambulam
sem tréguas,
deixem seus olhos fixos
... ...
Sérgio Jacaré, 1990
Como em todo o Setembro, faz tempo, os "gaúchos" festejam a si mesmos, cantam suas façanhas, desfilam suas bravatas, dançam sua hipotética superioridade. Louvam um passado harmonioso que não existiu, que não é histórico. É só lenda. A celebração cívica da "semana farroupilha" é organizada e coordenada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, criado em 1948 no seio da sociedade civil, e com o apoio oficial do governo do Estado desde 1975. Lembrando aqui que tradição é a transmissão de costumes, crenças e valores múltiplos através das gerações humanas, constituindo elemento fundamental na construção e manutenção da identidade cultural de um povo. Mas tradicionalismo é um movimento ideológico que quer manter viva uma única tradição - a do "patrão". E tem por objetivo camuflado justificar a opressão de classe no tempo presente. Afinal, sempre foi assim, um patrão tão bom.
O MTG, desde logo, escolheu a guerra farroupilha como seu mito fundador , seu ponto de partida simbólico, como se tivesse sido uma guerra popular por libertação do "povo" quando , na verdade, só acontecida para defender os interesses dos estancieiros latifundiários destas plagas. Suas lideranças jamais acenaram com a distribuição de terra para os peões nem com o fim da escravidão para os cativos. Em 1964, mostrou-se de pronto apoiador da "revolução" que ia livrar o Brasil do comunismo. Por isso, ainda naquele ano, foi incluído no projeto cultural da ditadura como elemento agregador de gentes em torno do conservadorismo político e social. E a "semana farroupilha" foi oficialmente criada. Serviu como luva às intenções golpistas de criar uma base social que defendesse e legitimasse o arbítrio. Espalharam-se os "galpões crioulos" pelos colégios, clubes de amigos e quartéis da brigada militar.
Ao final do período ditatorial, estava enraizado de tal forma o conservadorismo sócio-político na sociedade sul-rio-grandense que o primeiro governador eleito pelo voto depois de 21 anos de chumbo foi Jair Soares, um homem do "regime" que, em 1985, sancionou a lei que estabelecia o "dia do gaúcho".
Embora algumas tentativas tenham sido feitas, ali no final do século XX, para desvelar culturalmente os engodos desse tradicionalismo regional, muito pouco se avançou na direção pretendida.
Entre os símbolos "tradicionalistas", é destaque consensual o chimarrão, visto como expressão maior da nossa hospitalidade e da nossa cordialidade. Numa roda de mate cabem todas as classes, é o que se espalha aos ventos. Mas não cabem, é só mito.
O termo chimarrão, do espanhol "cimarrón", originalmente significava bicho solto, de rumo incerto, como os cães sem dono, ou o gado selvagem espalhado pelo sul da América, desde a derrocada das estâncias jesuíticas. Cão chimarrão, gado chimarrão. Assim, nos idos do século XVII. Pejorativamente, passou a significar também gentes. Aquela gente xucra, bruta e andarilha, sem eira nem beira. Chimarrões foram considerados todos os peões daquele tabuleiro. Bem assim, pelo tempo a fora.
Por extensão de identidade, acabou virando sinônimo de "água da erva", bebida amarga apreciada pelos chimarrões humanos, que lhe davam o nome de mate, do quíchua "mati". E a usavam nos rituais de acolhimento com que os povos guarani, quíchua e aimará recebiam suas visitas. O gosto de "chimarrear" dos povos originários foi se espalhando igualmente entre a mestiçagem forçada que chegava para trabalhar nas atividades da pecuária nascente. Mas custou muito para entrar nos avarandados da "casa grande". E lá só chegou quando se descobriu que ajudava a amenizar as ressacas do patrão.
Antes disso, bem no princípio, tinha sido a voz domesticadora dos jesuítas, prometendo aos povos originários destes "pagos" uma vida comunitária idealizada, forjada pelo delírio imperialista da então poderosa igreja católica.
Depois, em meados do século XVIII, a inescapável desventura da dispersão, ao fim das guerras guarani-. missioneiras. Uma sobrevivência errante, o mais das vezes solitária, caçando gado solto para comer a carne e vender o couro, com as mãos qualificadas pelos padres para o ofício pastoril da civilização branca, deixando ver pelas feições do rosto a impotência das mães chinas frente a sanha estupradora dos invasores europeus. E no peito carregando o medo de cair nas mãos de um "bandeirante". Não eram bem vindos nos "povos" por onde passavam, aqueles "índios vagos".
Pejorativamente, começaram a receber também a alcunha de "gaudérios" ou "gaúchos". Gaudério querendo dizer "vadio". Gaúcho, do espanhol gaucho, querendo dizer "sem pai", mas também "filho da china" Julgados como salteadores, combatidos pela sociedade em construção, discriminados pelos "de bem". Eles, que nada tinham, eram uma ameaça para os que tinham muito. Assim diziam os que tinham muito.
Contudo, no tempo em que seguiam a pé pelo chão rio-grandense, mestiçados pela força bruta, ia por aqui sendo formado, paralelamente, o latifúndio. O modo de usurpação do solo escolhido pela monarquia portuguesa para garantir "seus" direitos sobre um vasto território ao sul do Trópico de Capricórnio. Enquanto "comandâncias militares" e "barras diabólicas" protegiam a costa oceânica. O gado chimarrão deixado pelos jesuítas e multiplicado livremente pelos campos, uma riqueza "pronta", dádiva da natureza, foi o atrativo oferecido pelo rei aos candidatos à terra prometida. Também como riqueza pronta, daí por diante estariam disponíveis para o trabalho campeiro aqueles desgarrados da vida colonial.
O tempo passou, a terra foi cercada, a porteira fechada, a concepção estancieira de mundo instaurada e o colonialismo latifundiário precisou realmente absorver aqueles "vagos". Só eles sabiam o manejo adequado da gadaria xucra que continuava resistindo à vida nos currais. Temporários, diz a lenda que por vontade própria. Não gostavam de trabalho "fixo".
Vieram também as guerras caudilhescas de fronteira e os peões/gaúchos/chimarrões precisaram ser soldados. Tal qual os contingentes negros escravizados que, originalmente, tinham vindo para sofrer e morrer nas charqueadas. Colocados sempre na linha de frente. Se por vontade própria, a lenda não conta.
Esta é a história não contada, aquela que não vira nome de rua nem de praça. Que não usa bombacha nem vestido com lacinhos. Muito menos botas ou lenços coloridos.
Assim, o Estado do Rio Grande do Sul chega ao século XXI trazendo em sua "mala de garupa" uma bagagem ideológica forte o suficiente para fazer parecer real o que real não é. Considerando aqui ideologia com o significado que lhe deu Marx - uma falsa visão da realidade propagada pela classe dominante para mais facilmente continuar dominando.
O "pago" ponta-sul do Brasil, tão orgulhoso de suas peculiaridades geopolíticas, autoproclamado tão "aguerrido e bravo", querendo-se tão único dentro da brasilidade, está hoje sendo "moldado" pelo governo Eduardo Leite, eleito e reeleito pelo voto, para servir com exclusividade aos donos do poder econômico. Desde que chegou ao poder, alicerçado no modelo neoliberal mais puro, nada tem feito a não ser submeter o chão e o povo do RS aos interesses do capital em sua fase contemporânea. Para isso, ataca em todas as direções, mas escolheu como prioridade o tripé ESCOLA PÙBLICA - EMPRESAS ESTATAIS - POLÌTICA AMBIENTAL, com a cumplicidade do Parlamento Estadual, majoritariamente seu.
Arremete violentamente contra servidoras e servidores públicos, desmanchando no ar suas carreiras, arrochando seus salários, tirando-lhes a dignidade profissional, tudo para que não consigam cumprir a tarefa que lhes cabe - servir ao público.
Paralelamente, vem desmantelando o Código Ambiental do Estado em favor do agronegócio da soja e da casta "invisível" da especulação imobiliária urbana e rural, sem que as vozes levantadas em contrário consigam vencer os gritos a favor, ampliados pela RBS. Nem a tragédia de 2024 conseguiu provocar uma mudança nesse rumo. Mesmo com "um pingo no telhado e o pampa indo embora".
E não fica por aí o esforço governamental de Eduardo Leite para deixar o Estado mais pobre e sua escória dominante mais rica. Com "o golpe do plebiscito", tirou o voto popular da jogada e logrou privatizar as históricas CEEE e CORSAN, em vitória avassaladora sobre a luta social sul-rio-grandense. Longa e dura tinha sido a resistência, Muito grande a dor da perda.
No entanto, apesar de tantas "façanhas", tem aparecido nas pesquisas como o preferido dos "gaúchos" para o Senado da República. Talvez por manter acesa no Piratini uma "chama crioula" que não ilumina, cega.
MARIA
Nenhum comentário:
Postar um comentário