sábado, 23 de março de 2013

Paulo, onde estás que não te escuto?



No início da década de 1970, o Brasil vivia o auge da ditadura civil-militar, instaurada no país em 1964, e celebrava-se o "milagre econômico", que iria nos levar pelos caminhos do desenvolvimento social. No município do Rio Grande, RS, inaugurava-se o "super-porto", inclusive com a presença do general-ditador da hora. Engalanava-se a cidade para tão ilustre visita. Cada setor da sociedade recebeu o encargo de contribuir a seu modo para o brilho do momento ímpar.
Quando se soube que o general-ditador ia chegar em carreata vinda de Pelotas e passar sob o novíssimo trevo rodoviário, indo direto às igualmente novíssimas instalações portuárias, alvoroço. Seria necessária também uma homenagem lá do alto do viaduto. Quem sabe, criancinhas, bandeirinhas, tudo muito verde e amarelinho. Daquela singela parte da festa, foram encarregadas as escolas públicas estaduais e municipais, ainda "primárias", do Senandes, do Bolaxa e do Balneário Cassino, comunidades do entorno da "passagem". Para que bem se preparassem, com o respeito devido a tão ilustre visitador, recebeu cada uma delas um comunicado da polícia federal que orientava as professoras sobre os comportamentos adequados às crianças (e a elas) em evento de tal magnitude. Bastava que abanassem com as bandeirinhas, uma vez que o vento, a altura e o carro fechado do general-ditador impediriam a percepção de qualquer som por parte dele.
Uma professora, violentada pelo arbítrio, combinou com sua turma que eles não se calariam. Iriam gritar muito alto: Abaixo o ditador! Abaixo o ditador!... Ao chegar o dia D, muito vento, muito cinza, muitos gritos no vento e no cinza: Abaixo o ditador!  Abaixo o ditador! Que não ouviu, muito menos viu a "homenagem" vinda de cima. A velocidade dos carros da comitiva não permitiu. Mas a professora lá, incansável, incentivando o grito: "Paulo, onde estás que não te escuto? Marisinha, grita forte!". Ao ser alertada sobre a inutilidade dos gritos, subitamente compreendeu - não importava o alcance das vozes naquele momento, ela estava era ensinando a gritar. Por isso, continuou: "Paulo, onde estás que não te escuto?..." Alguns aprenderam.

EM TEMPO:  a professora primária em questão, por sua insignificância na ordem daqueles fatos, foi apenas advertida por maus modos. 
Maria


Outras crônicas daqueles tempos: O Ato e o Fato, Carlos Heitor Cony. Objetiva, 2006.


A voz de um homem que sem ser de esquerda, mas sendo um democrata, transformou-se na voz de muitos, no brado diário contra o regime militar ditatorial através das folhas de um jornal, até dezembro de 1964, quando então não foi mais possível. Reunidas em livro, foram editadas no final daquele ano e recentemente reeditadas. Mais do que simples crônicas, são hoje registros de um passado ainda próximo. Vale a leitura.

4 comentários:

  1. Acho que sei quem era aquela professora...

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  2. Acho que sei com quem aprendi a gritar!

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  3. Maricotinha, fico feliz e ver como tua formação social acrescentou um conteudo que os meios academicos não oferecem. Não te preocupa, pois eu sempre estarei te escutando estando por onde estiver.

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  4. E continuamos a gritar! Um beijo muito carinhoso da aluna e companheira que se soma ao teu grito por justiça e igualdade!

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